Exposição individual de Paulo Quintas Inauguração a 9 de Novembro de 2019, às 16H DOMINAR O IMATERIAL (mantendo-o imaterial) “Vera Cruz (do fragor dos ventos e das águas, primeiras paisagens)”, esta exposição, tem um título processual referente à pintura como um fazer aproximável ao trabalho dos ventos e das águas revoltas, tudo culminando, inesperadamente, em calmíssimas paisagens ou monocromos (que parecem) matéricos. Então, passemos a uma primeira conclusão ou constatação (do avesso): seria um tanto imediatista que o título fosse de natureza processual, informativo, metafórico, que fosse uma definição metafórica da pintura. A pintura poderia ser eco das matérias dos ventos e das águas revoltas (as leituras do autor estão muitas vezes ligadas a viagens tenebristas históricas e anónimas, ou a biografias de figuras bizarras neste contexto, como Hitler ou Wagner…), mas a pintura é, diversamente, não se duvide, um eco abandonado de si mesmo, um eco de nada. Ora, o que vemos não são pinturas que representem ventos, tempestades ou paisagens marinhas tempestuosas, vemos o inverso: é a pintura que vai silenciar tudo isso, em telas monocromáticas (contudo, desconfiamos das suas camadas, no entanto básicas, simples e eficazes – porque se apagam), em composições idênticas de tela para tela, mas, no fundo, muito diferentes (bastando levantar uma e deitar – horizontalizar – outra: diferença radical). A imaginação está pois guardada “dentro” da pintura, no exterior (pele da pintura) tudo parece calmo. No entanto, eis outra conquista desta pintura: não há interior nem exterior, nem pele, há superfícies que parecem espessas e matéricas, mas se despegam da matéria – a isso são obrigadas pois o autor, com espátulas e facas tudo vai aplanando e alisando. O apagar é produzir, fazer. Palimpsesto. Apago, cubro para que a imagem nasça. Mas aqui não há imagens. Diria que Paulo Quintas inventou um tipo de imagem muito coerente, inexplicável: a imagem pictórica. Ora, os ventos e as águas revoltas é que aspiram a ser pintura, e até acabam por sê-lo, não é a pintura que ecoa a revolta das águas ou a da baleia branca de Melville….. Mas tudo isso anda por esta pintura, não está nela presente, mas também nunca lhe desaparece. Citei, noutro lugar, Deleuze. O Deleuze de Logique du Sens e o capítulo dedicado ao esquizofrénico e à “criança”, a Artaud e ao seu desdém pelas superfícies como apaziguamento do intelecto, seja na literatura ou nas artes genericamente. O que é deveras interessante nesta pintura é que, na sua espessura de bases e matérias (e luminosidade cromática, por vezes), esta pintura é sempre superfície, mas uma superfície pictórica, ou seja, uma superfície de camadas invisíveis, e isso é o que lhe dá grande pertinência discursiva (pictórica): as camadas de uma pintura têm pois de existir na nossa mente e serão por nós construídas, não é o pintor que lhes tem (ou nos tem) de fazer uma “visita guiada” à pintura que descobriu. O pintor tem é de iludir o observador: revela que a pintura se faz a si mesma, mas isso é ele, o pintor, que o determina. O pintor faz a pintura que parece que se faz a si mesma. Faz com que ela se faça. Logo, faz tudo e quanto mais simples é o processo, menos a pintura se “faz” – e Paulo Quintas aprecia “fazer pouco” e escolher procedimentos básicos. Caravaggio ocultava mais (se olharmos agora para as marcas ou incisões realizadas a compasso, em Quintas). O abozzo do lombardo, primeira camada de base branca (e a primeira camada branca também é frequente em Paulo Quintas), era sujeito a incisões (como estas pinturas), as incisões sinalizavam o processo de desenho de Caravaggio, os pontos de onde provinham as composições. Em Paulo Quintas, por seu lado, o desenho a compasso (geralmente figuras geométricas simples) integra a matéria pictórica, tanto quanto o óleo ou a cor, elemento estrutural da linguagem, portanto. Esta pintura individualiza-se em “jogos” inusitados: há casos em que a imagem resulta do contacto entre telas que estão abandonadas no exterior (rua) durante tempos alargados (anos). Noutros casos é a última camada espatulada que revela a imagem final apagando a situada por debaixo. Isto é: só posso ver o que é camada inferior se eu a cobrir. Paradoxo, de novo. Os longos tempos de secagem do óleo permitem que nada se perca: uma camada existe sobre outra e sobre todas um medium líquido pode surgir, ser lançado. O informe gerado é depois sujeito a um desenho a compasso que comanda o gesto espatulado: por vezes aparece um círculo, mas nenhuma forma é aqui usada na sua integralidade: esse círculo desfaz-se em algumas partes, de facto anuncia-se presente, mesmo que numa porção escassa. Existe, mas em fragmento. Aliás, o círculo, sem princípio nem fim, forma peculiar portanto, faz esta pintura circular em torno de si mesma. E, no final, revela-se camada inédita, imprevisível. Mas um imprevisível escolhido entre muitos e muitas hipóteses. O pintor escolhe um tipo de imprevisibilidade. O único possível. Cada tela é a “tela certa”. É uma afirmação sólida e desfeita pela vontade do pintor. A matéria apaga-se. Fica a forma. Imaterial. Táctil. Exacta. Carlos Vidal