Cooperativa Comunicação Cultura
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Urupë, ou o (des)velamento da imagem Ainda que as reproduções mecânicas do mundo se fixem sobre papel emulsionado, tal não significa que as imagens se deixem aprisionar indefinidamente pela matéria. Uma narrativa canónica diria que o homem branco ocidental necessitou tocar nas imagens para mediar a ligação entre o olho e o espírito, e através desse gesto suscitar a primazia da percepção. Diria igualmente que a fotografia terá prosseguido essa mesma genealogia da representação ao duplicar as imagens dirigidas ao olhar táctil, abandonando assim o fascínio sentido pelo pintor no momento em que é trespassado pelo universo. Noutras latitudes, a relação sagrada com a natureza é um componente marcante da vivência dos povos autóctones, e é desse vínculo que emergem as visões, o respeito e a sabedoria profunda acerca da floresta enquanto organismo transcendente. Por um lado, é conhecido o modo como os rituais de Ayahuasca (Peru) favorecem a transmigração dos espíritos da floresta, bem como da sua visualização pelos xamãs, através da incorporação de uma imagem-espírito. Neste âmbito, a palavra “espírito” não tem qualquer conotação com a religião católica, significa apenas o princípio vital que anima o conjunto das espécies vivas, o seu elã vital. Nas palavras do artista peruano, Pablo Ameringo, «uma planta pode não falar, mas contém um espírito que é consciente, que vê tudo, que é a sua alma, a sua essência, que a torna viva» (Narby, 2004:95). Jeremy Narby, antropólogo que viveu e estudou durante décadas junto dos ayahuasqueros, propôs como hipótese explicativa desta relação - entre a mente humana e o ambiente natural - a existência de um processo de biocomunicação entre o ADN das células humanas e vegetais. Em suma, Narby concluiu que o xamã, ao ingerir células de uma planta alucinogénia, tornaria os seus neuro-receptores do córtex visual sensíveis à emissão biofotónica (fotões de origem celular), produzindo-se assim uma espécie de televisão da floresta ou televisão biosférica. Numa outra concepção antípoda de imagem, os índios Yanomami ignoram as nossas modalidades de relação com a luz emanada das coisas. Na especificidade desta cultura indígena da Amazónia (Brasil) não subsistem imagens materializadas, e de cada vez que se pretende aceder à presença do “real”, faz-se descer as imagens no corpo do xamã. É através da incorporação de um “dispositivo audiovisual” , disperso na natureza, que se efectua a descida ao corpo social do infinito-virtual do ser das coisas. E, se para os Yanomami tudo é imagem, é porque tudo irradia energia (gradientes de potência). Urupë é o nome dado a esse processo de produção da imagem, resultante da coreografia dos corpos transfigurados e da fluidez das figurações que escapam à nossa ideia de representação. Ao contemplarmos a série fotográfica Urupë da autoria de Carina Martins, podemos antever que nela perpassa uma visão, e uma estética, que propomos aproximar de um sentido, digamos universal, de Urupë, traduzido numa certa experiência ontológica da natureza ou daquilo que Espinoza e Coleridge descreveram como natura naturans: a natureza enquanto ser senciente e organismo autopoiético. Próxima também de uma síntese dada pela vivência literária da Ecologia Profunda, nas páginas de naturalistas americanos como Ralph Waldo Emerson ou Henry David Thoreau, ou absolutamente experienciada na filosofia da natureza de Aldo Leopold e Arne Naess. Por outro lado, numa linhagem patrimonial das ferramentas imagéticas de (re)produção da experiência da presença, onde especulativamente integramos este conjunto de fotografias, colocaríamos sem dúvida uma parte significativa da obra do cineasta, Andrei Tarkovsky. Numa das suas obras primas, Stalker, é evidente que a Zona, enquanto paisagem com vida própria, ocupa a maior parte do espaço fílmico, sendo por isso um lugar hiperestésico e em constante mutação. Em Tarkovsky, o mundo humano é obsessivamente correlacionado com os quatro elementos da natureza. A natureza comunica e intercede junto dos humanos, é por isso metáfora poética das emoções e ícone de uma hipersensibilidade paradoxal. A complexidade visual desta série não se limita apenas ao jogo caleidoscópico entre o suposto referente - a flora residente em algum jardim botânico - e as texturas que dão corpo a um manto diáfano ou fantasmático, uma espécie de véu reticulado através do qual se encobre todo o plano visual. A esta membrana translúcida é adicionada ainda uma outra estrutura arquitectónica, composta por esquadrias (de janelas), a qual se dissimula numa matriz que parece servir de enquadramento ao universo vegetal de uma natureza inacessível. O que vemos nestas imagens é essencialmente uma composição por camadas de elementos visuais, uma estratigrafia composta por velaturas, reflexos e linhas perpendiculares em interação permanente. Em algumas das fotografias é mais intensamente notória a tensão vibrátil que delas emerge, produzindo-se nestes casos uma modulação da percepção visual que classificaríamos de alucinatória. Neste contexto, a autora propõe-nos uma aproximação velada à Phýsis ("Natureza"), como se a capacidade de apreender a vida que brota incessantemente fosse inacessível à percepção humana. Num certo sentido, o conjunto de fotografias que compõem Urupë remete para uma qualidade metafísica do conhecimento, ou seja, para o transcurso que visa o acesso cognitivo à essência originária do devir. Os velamentos e os reflexos comuns às imagens que integram a série, formam de facto uma pertinente metáfora, alusiva à construção filosófica da verdade, em Platão. Para o pensador grego, a “verdade” ou a “realidade” (Alétheia), consistiria num processo de desencobrimento das imagens - ou das aparências - que revestem a natureza das coisas em si. Mas relembremo-nos agora do princípio deste texto, para verificarmos que a opção de Carina Martins consistiu em representar a natureza através de um dispositivo visual que não corresponde já ao fetichismo do olhar táctil, nem ao prazer da contemplação (gaze) de um referente humano demasiadamente naturalizado, a natureza objectivamente retratada. Em vez disso, o sistema imagético da fotógrafa desenvolve-se num território parcialmente utópico, isto é, sem a estabilidade de uma topologia concreta que nos permitisse instaurar uma mediação eficaz com o punctum destas imagens. Em Urupë, não se trata, portanto, do contributo da acuidade do campo visual para a percepção fenomenológica de um determinado objecto. Talvez porque, na realidade, se quisermos aceder à natura naturans, a representação pictórica da natureza de pouco serve. Como figurar, como transformar em imagem aquilo que, por definição, deve escapar à ordem da representação? Esta seria a questão a colocar à imaginária confluência entre os diversos modos iconográficos de lidar com os limiares da imagem, das imagens sem suporte e que se constituem para além da representação – as imagens no seu ”estado puro”? Rui Matoso horário: de terça a sábado das 14h30 às 19h30 (em outros horários por marcação) Carina Martins, nascida em 1975, reside em Lisboa e é tradutora e fotógrafa. Licenciou-se em Tradução de Inglês-Alemão e desde 2008 tem exercido actividade na área da fotografia em diversas instituições. Trabalhou no Jornal Centro, na Global Imagens e na Binaural/Nodar como fotógrafa e na área de produção. Em 2016 terminou o Curso Avançado de Fotografia no Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual. Com o apoio de DGPC
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