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Fernando Marques de Oliveira / o eterno retorno, 50 anos

Fernando Marques de Oliveira / o eterno retorno, 50 anos

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Inimigo da paisagem

On devine en lisant, on crée; tout part d’une erreur initiale.
Marcel Proust

Há uma obra de Fernando Marques de Oliveira que inclui a frase "inimigo da paisagem". Curiosa afirmação, esta, cujo sujeito é indefinido, facto que cria desde logo uma tensão linguística, a qual contamina a plasticidade do trabalho. Será o autor contra aquele género artístico? Ou poderemos antes ler aquele curto texto como um comentário ao modo como o humano tem tratado a natureza por si edificada? A minha resposta evita ambas as perguntas, pois, creio, ser possível ler o pequeno escrito como um aforismo ou, melhor ainda, como um fragmento de um verso transcrito a partir de uma estela grega — penso sobretudo em Arquíloco, que, no século VII a.C., escreveu: "…. Sei uma coisa muito importante:/ a quem me faz mal, respondo-lhe com terríveis ofensas."

Nesta exposição reúnem-se cinco décadas da produção de Fernando Marques de Oliveira, homem culto, dandy, gentleman, aristocrata, amante das coisas boas da vida. Ouvinte de música clássica e jazz, leitor de poesia — Cavafy, Ferlinghetti –, filosofia – Santo Agostinho —, prosa — Paul Bowles, o artista é sobretudo um proustiano, sendo "Em busca do tempo perdido", na versão traduzida por Pedro Tamen, o seu livro de cabeceira.

Estas dimensões que caracterizam o seu modo de ser e estar na vida, transparecem na sua obra, mesmo nos momentos em que ela procura ocultar, através do uso do negro, geometrizado ou orgânico, aspectos relacionados com a composição formal dos trabalhos que produz. Fernando Marques de Oliveira tem a sua "maneira negra", de traduzir as suas vivências, a sua inspiração, porque nem tudo é luz no processo de criação, sendo este por vezes atravessado pelas mais profundas dores.

A escolha de trabalhos para "Eterno Retorno" obedeceu sobretudo a dois critérios. O primeiro foi o de tentar mostrar obras de diferentes períodos, tendo como referentes iniciais a passagem do artista, nos anos de 1970, por Bruxelas, onde frequentou a Academia de Watermael-Boitsfort — na capital da Bélgica, chegou a cruzar-se e a conviver com o poeta Al Berto — e a Revolução de Abril — Fernando Marques de Oliveira deu um importante contributo, juntamente com Fernando Pernes, Etheline Rosas e Mário Teixeira da Silva, para a criação do CAC – Centro de Arte Contemporânea, que se localizava no Museu Nacional Soares dos Reis e onde, entre 1976 e 1980, foram realizadas quase 100 exposições.

O segundo critério relaciona-se com a apresentação de obras recentes produzidas por este autor, nas quais se detecta o desejo de dar às formas uma dimensão orgânica, corporal. De resto, estão lá os elementos que têm vindo a definir o trabalho de Fernando Marques de Oliveira: a relação com a literatura, a exploração da mancha enquanto factor estruturante da composição, a convocação de elementos da arquitectura e da escultura – a coluna, o obelisco – de forma a actualizar modos  clássicos do fazer e ainda a colaboração autorizada ou não com outros autores, como é o caso do fotógrafo brasileiro Wanderson Alves.

A questão do “Eterno Retorno”, que engloba, enquanto título, a exposição, entronca com o assunto da paisagem, evocado no início do texto. Embora seja um tema que vem de longe, interessa-me aqui evocar a forma como Nietzsche descreve, em “Ecce Homo” (1908), o seu despertar para esta ideia filosófica: “Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi lançado em uma página com o subscrito: ‘seis mil pés acima do homem e do tempo’. Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana [na Suíça]; detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse pensamento.”

A ideia de “eterno retorno” é desenvolvida pelo filósofo alemão noutros livros, nomeadamente em “A Gaia Ciência” (1882), onde se lê: “ E se um dia, ou uma noite, um demónio lhe aparecesse furtivamente na sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!’. — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou.”

Voltei várias vezes a Veneza. Há cerca de um mês entrei no Hotel Danieli. Numa das salas de estar situada junto à recepção, pode ver-se um friso de pinturas com figuras “à la dernière mode”, que ainda assim contém velhos motivos e padrões, como os apropriados por Mariano Fortuny y Madrazo das pinturas de Carpaccio, para os usar nos seus mantos.
Podemos associar aquelas obras à vida social descrita por Marcel Proust, na sua “Recherche”. O escritor francês esteve na cidade italiana em 1900 — existe uma fotografia onde se vê o autor sentado numa cadeira instalada na varanda térrea do Hotel Europa/ Ca' Giustinian, enquanto observa a paisagem, com os seus “palazzi” — feitos com madeiras, tijolos, mármores, estuques e frescos —, as suas gôndolas, a “laguna”, as igrejas e as cores trazida pela proximidade ao Adriático.

No livro “Proust and Venice”(1989), Peter Collier nota: “Em certos momentos de ‘A la Recherche du temps perdu’, uma referência à arte ou à literatura cristaliza um humor, mas, ao fazê-lo, parece muitas vezes acrescentar mistério e  opacidade ao texto. Na “Fugitiva”, Marcel deseja uma jovem veneziana vendedora de vidros, e quer levá-la com ele para a sua casa de Paris, como se ela fosse uma pintura de Tiziano”:

“Quant à ma ruine relative, j’en étais d’autant plus ennuyé que mês curiosités vénitiennes s’étaient concentrées depuis peu sur une jeune marchande de verrerie, à la carnation de fleur qui fournissait aux yeux ravis toute une gamme de tons orangés et me donnait un tel désir de la revoir chaque jour que, sentant que nous quitterions bientôt Venise, ma mère et moi, j'étais résolu à tâcher de lui faire à Paris une situation quelconque qui me permît de ne pas me séparer d'elle. La beauté de ses dix-sept était si noble, si radieuse, que c'était un vrai Titien à acquérir avant de s'en aller.”

Inimigo da paisagem, como não podia deixar de o ser, até porque o mar lhe entra casa adentro, Fernando Marques de Oliveira está diariamente na companhia da radiosa beleza que agora nos dá a ver, a todos nós, relativamente arruinados, mas ainda afectados pelo enigma da arte e pelas  voltas que a vida dá. A todos nos responde com terríveis ofensas. E fá-lo com um estilo que é só seu, seja cancelando uma gravura oitocentista ou pondo-nos diante de um velho espelho veneziano, que envelheceu sem decrepitude e nos olha com um rigor geométrico intransigente. 

Óscar Faria
Novembro 2024

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