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Diga 33 Poesia no Teatro | Virgílio Martinho por Carlos Alberto Machado

Diga 33 Poesia no Teatro | Virgílio Martinho por Carlos Alberto Machado

Virgílio Martinho (Lisboa, 1928-1994) teve uma relação de proximidade com o "movimento surrealista" do Café Gelo nas décadas de 50 e 60 do século XX. Trabalhou como desenhador de Obras Públicas desde 1956 até à aposentação, 30 anos depois. Em 1958, publicou a novela, de pendor fantástico, “Festa Pública”, na colecção "A Antologia em 1958", dirigida por Mário Cesariny. Na mesma linha, seguiram-se os contos de “Orlando em Tríptico e Aventuras” (1961), e, noutro registo, “Rainhas Cláudias ao Domingo” (1972). Com Ernesto Sampaio, organizou para as Edições Afrodite a icónica “Antologia do Humor Português” (1969) - mais de mil páginas. Em 1970, deu início a uma vertente que se tornará dominante na sua obra, o teatro, com a publicação da peça “Filopópulus”, na revista Grifo (texto encenado por Joaquim Benite em 1973). Seguiram-se dezenas de outros textos no Grupo de Teatro de Campolide, actualmente Companhia de Teatro de Almada. Com “Relógio de Cuco” (1973) distancia-se das fórmulas surrealistas. Militante do MUD, esteve preso no Aljube, e já depois do 25 de Abril esteve na base da criação de um Sindicato. Em “O Grande Cidadão” (1963), romance a todos os títulos excepcional, denuncia as políticas de opressão, tortura e censura aterrorizantes de que se alimentam as tiranias. Faleceu em Lisboa, a 4 de Dezembro de 1994. 

Os prédios da rua são amarelos e vivazes. Há flores vivazes. Há colchas e colgaduras vivazes. Há um cadáver fresco absolutamente provado que é vivaz. Que alegria, que harmonia! Que esterco de alegria! Os prédios são a última palavra em construção, tudo neles é estudado, nada é esquecido. Os arquitectos velam. Dois agudos sólidos tresmalham-se como bovinos, não se percebe se são prédios, tanks, pessoas ou intenções.

Virgílio Martinho, in “Festa Pública” (1958), Obras de Virgílio Martinho, Volume I, Companhia das Ilhas, Novembro de 2021, p. 34.

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Levantou-se e passeou de mãos atrás das costas; era o passado, ou era um presente, sim, tudo isto tinha o seu sentido, embora hermético para condizer. É que este homem tivera consciência, de repente, de que já não havia o que se pudesse chamar Constituição, nem coisa nenhuma que de longe ou de perto se parecesse; apenas o Grande Cidadão, que representava ou brincava a isso mesmo que já não havia. Mas então qual era a razão oculta da visita do Homem do Futuro? A comédia? Tornou a sentar-se e a falar:
— Ele quer estabelecer um precedente para nos liquidar a nós na primeira altura.
Era a continuação da comédia ou outra que lhe ocorrera?

Virgílio Martinho, in “O Grande Cidadão” (1963), Obras de Virgílio Martinho, Volume II, Companhia das Ilhas, Novembro de 2021, pp. 195-196.

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O Glorioso Morto da Cidade estava exposto às homenagens públicas. O organizador das exéquias era D. Paio, o magnífico castelhano, que tudo previra e montara segundo o protocolo e os usos tradicionais. Por ser assim, as personagens entraram, gostaram, cumpriram respeitosamente para com a viúva, deram vénia ao finado e estabeleceram-se pelos cantos, rezaram as mulheres, perfilaram-se os homens. Nelas e neles, todos juntos, os tons, os olhares, os comentários com o luto geral na única cidade em paz, entretida sofregamente com a bolsa, repleta de dinheiro e de negócios. À margem os mortos e os canhões. No mundo estrangeiro o extermínio e as batalhas, ali, naquele palácio, a gama sem fim dos pretos em outros pretos e uma série bem doseada de cinzentos, conforme parentesco, desgosto e cargos. A exactidão do funcionamento: impressionante, o poder: visível a olho nu, a viúva: a viver e a morrer numa atmosfera de cravos, flor preferida do Glorioso Morto Governador, agora na urna em estado de repouso, com o nariz, o peito e as biqueiras de fora para se ver cadáver e tudo continuar sem cheiro nem ralé.

Virgílio Martinho, “Morto Glorioso”, in “Surrealismo / Abjeccionismo”, antologia seleccionada por Mário Cesariny, Minotauro, Março de 1963, p. 148.

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Carlos Alberto Machado (Lisboa, 1954) é licenciado em Antropologia e mestre em Sociologia da Comunicação e Cultura. Escreveu ensaio, teatro, poesia, contos, romance. Foi professor de teoria e investigação nas Licenciaturas em Teatro da Universidade de Évora e da Escola Superior de Teatro e Cinema. Tem colaboração dispersa por várias revistas e antologias. O primeiro livro de poesia, “Mundo de Aventuras”, surgiu em 2000. Nove anos depois, reuniu num só volume a sua produção poética: “Registo Civil” (Assírio & Alvim). Em 2009, publicou na & etc “5 Cervejas para o Virgílio”, breves recriações sob a forma de drama de conversas com Virgílio Martinho. Editor da Companhia das Ilhas, que fundou com Sara Santos em 2011, tem vindo a exercer um importante papel na edição de novos autores e na recuperação de obras algo esquecidas. Vive nas Lajes do Pico (Região Autónoma dos Açores).

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VIRGÍLIO Sabes, Carlitos, talvez um dia te dê também para inventares a vida de outra maneira. Inventar, pois!, que outra merda querias que se fizesse? Esses gajos andam todos a cagar d’ alto do neorealismo, do surrealismo, do abjeccionismo e do caralho que os foda a todos, é tudo mas é um grande despautério, miúdo! A malta o que faz é inventar a porra da vida, uns têm é mais jeito e leituras que outros, é o que é! E uns matam-se, como fez o doido do Dácio. E não me venhas com a porra do Herberto! Olha pró gajo, ali cheio de admiradores, aquelas putas que nem ler sabem, como aquele cabrão do Nelson, chulo de merda! O cabrão do Herberto é só um grande inventor da merda da vida. E a puta do Cesariny é outro. E o doidivanas do Pacheco leva-lhes a melhor. Não há muitos mais que o façam assim com as letras. De resto, ficam a inventar mulheres e filhos e empregos e salamaleques e enfartes do miocárdio e blá blá blá e reformas e medalhas e o caralho do Salazar e estes filhos da puta dos partidos da democracia, tudo invenções rascas. A verdade? Talvez os mortos a saibam… Não digas a ninguém que te digo isto. Ora porra! Não fiques envergonhado. Bebe mais uma.

Carlos Alberto Machado, in “5 Cervejas Para o Virgílio”, & etc, Junho de 2009, pp. 49-50.
Site: https://teatrodarainha.pt/eventos/diga-33-virgilio-martinho-por-carlos-alberto-machado/

Fonte: http://agendaviva.smartcityhub.pt/Detalhe-Evento.aspx?v=2&lg=1&g=59626
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