Desde 1965, quando a editora alemã Suhrkamp Verlag aceitou o seu romance Die Hornissen, Peter Handke publicou perto de setenta títulos, em géneros diversos que incluem também a poesia e o ensaio, destacando-se um importante número de textos para teatro e alguns trabalhos para cinema. As suas peças, em particular, revelam uma vontade de tensionar as palavras e a própria forma dramática ao limite: exploração da dimensão sonora e visual da cena por meio de uma importante escrita de didascálias, ausência de diálogo e de falas, comunicação directa com o público, restrição do texto a perguntas, são elementos que podemos encontrar em Kaspar (1968), Insulto ao Público (1966), A Hora em que Não Sabíamos Nada uns dos Outros (1992), O Jogo das Perguntas (1994), entre outros. Esta investigação sobre a linguagem tem lugar no quadro de uma interpelação dos usos sociais e dos poderes agenciados pela fala e pela escrita, questiona a elaboração gramatical do quotidiano. A audacidade e a actualidade da sua escrita, valeram a Handke um um bom número de prémios literártios, entre os quais o Georg Büchner (1973), o Prémio Literário Internacional de Vilenica (1987), o Prémio América (2002), o Prémio Franz Kafka (2009), para mencionar alguns. Anabela Mendes, Bruno Monteiro e Vera San Payo de Lemos encontram-se para discutir o teatro de operações de Handke na sua guerra contra as limitações da linguagem. Informações: producao.artesengenhos@gmail.com ANABELA MENDES O que o senhor Handke não disse ao senhor Wittgenstein É de silêncio que queremos falar. Interessa-nos aquele exacto momento em que as palavras que estão a ser ditas se suspendem e assim regressam e dissolvem no centro de linguagem alojado no córtex frontal. Este é o tempo de recolhimento das palavras, que hão-de voltar sob uma mesma ou outra configuração, e esse é também o tempo em que passado, presente e futuro podem parecer tão imperceptíveis quanto enigmáticos na sua ligação. Quem se ocupa disto? Quem pelo menos se ocupa disto a propósito da peça Gaspar (1967) de Peter Handke? Temos nela um perverso colosso de linguagem com que o autor austríaco pretende confrontar as sociedades contemporâneas no seu estado de doença sempre emergente: do final dos anos sessenta até agora nada melhorou que se veja. Gaspar aplica-se como uma terapêutica de choque em que a palavra falada se desboca, se contorce, em sucessivas estocadas, se desmembra e fenece. É assim até ao fim da peça. E, no entanto, Handke produz um subtexto sobre a discursividade do silêncio. Com ele responderá a Wittgenstein. BRUNO MONTEIRO «Gaspar, o que é agora Gaspar?», ou aprender a «ver a natureza como dramaturgia» nos dias de hoje A peça Kaspar acentua, contra as intenções pedagógicas do teatro «realista», um modelo «irrealista» da literatura. O logro da «literatura de descrição» consistia precisamente em impor a ilusão de «naturalidade» nas cenas que o seu teatro representa, em particular pela sua utilização de uma linguagem aparentemente inequívoca, definitiva e neutral que «imitava» o mundo. Pelo contrário, Handke procura que a impressão de estranhamento criada nas suas peças por via estética ou técnica torne evidente, escandalosamente evidente, «o que irrefletidamente se pensa, o que irrefletidamente se diz, o que se diz automaticamente, também o que outros irrefletidamente fazem, pensam, dizem» (Ich bin ein Bewohner des Elfenbeinturms, 1972, p.26). Para que a descrição da realidade não corresponda mais a uma prescrição, o tão salientado «formalismo» de Handke servia como método para revelar a linguagem como poder ordenador da realidade - e precisamente porque estava carregada ou enformada pelas estruturas de poder da realidade descrita. Paradoxalmemente, ao tornar o teatro o lugar por excelência da artificialidade, «romântica» como sublinhava de maneira provocadora, Handke visa forçar o reconhecimento de que o mundo que, em torno a nós, aparece como «natural» corresponde na verdade a um artefacto «manipulado». Numa época em que o espaço público se debate em torno à noção de «verdade», hesitando em emprestar a caução da crença às representações mais comuns do mundo, vale a pena pensar na pertinência que pode ter, atualmente, a dúvida provocada de Handke a respeito da capacidade da linguagem em construir uma representação «autêntica» do mundo - e, de passagem, passar em revista novos meios artísticos que têm sido utilizados para sublinhar, como outrora tentou Handke, a natureza artificial e artificiosa que podem ter tais representações da realidade. VERA SAN PAYO DE LEMOS Viagens no tempo Peter Handke conversa sobre 50 anos de escrita para o teatro Em 2011, estreia Immer noch Sturm [Tempestade ainda], uma peça de cariz histórico e autobiográfico, sobre o ramo materno da família de Peter Handke, no prestigiado Festival de Música e Artes Cénicas Salzburger Festspiele, cuja programação teatral estava a cargo do também autor Thomas Oberender. Um ano depois da estreia, há um reencontro de ambos para uma conversa intitulada Peter Handke und das Theater in Österreich [Peter Handke e o teatro na Áustria], no âmbito da exposição Die Arbeit des Zuschauers [O trabalho do espectador]. Depois dessa conversa, ocorrida no ano em que Handke comemorava 70 anos, surge o projecto de a prolongar numa série de outras conversas em que o autor reflectisse sobre os quase 50 anos de escrita para o teatro: desde a primeira peça, Publikumsbeschimpfung [Insulto ao público] (1966), até à mais recente, Die schönen Tage von Aranjuez [Os belos dias de Aranjuez] (2012). Entre Abril e Setembro de 2012, Berlim e Chaville, nos arredores de Paris, onde Handke reside, desenrolam-se assim quatro conversas, publicadas em 2014 sob o nome dos dois interlocutores e com o título Nebeneingang oder Haupteingang? Gespräche über 50 Jahre Schreiben fürs Theater [Entrada de lado ou entrada principal? Conversas sobre 50 anos de escrita para o teatro]. Ao sabor da conversa, quase sempre ao ar livre, surgem os traços do percurso de um autor que, considerando-se “um estranho” no espaço do teatro, continua a procurar, talvez por isso mesmo, desafiar as suas convenções e explorar territórios ainda desconhecidos. Os marcos dessas viagens no tempo serão relembrados aqui, em mais uma tentativa de esboçar o retrato de um autor sempre surpreendente.