João Saramago e Ricardo Rodrigues O mesmo material, linguagens diferentes João Saramago Chego ao trabalho. Limpo as mesas da sala, marco os lugares. Os pratos, os talheres alinhados, o copo voltado para baixo, uma vela ao centro das mesas redondas. Entra um casal de franceses pelas 20h. Cordialmente, convido-os a sentarem-se, perguntando o que desejam beber. Sirvo o vinho, tiro o pedido, entrego o pedido à cozinha, levo o serviço à mesa, levanto a mesa, limpo a mesa, marco a mesa, entra mais um casal, desta vez são holandeses. As mesas rodam. O processo repete-se. Pelo meio, há lugar para descobrimentos, troca de experiências. Há mesas que choram, mesas que riem, mesas que não querem saber. Quando chego a casa, desenho. Uma linha de uma ponta a outra, ás vezes do meio para o fim e do fim para o meio. Durante esse tempo, desenho linhas e linhas e círculos e círculos. Vou dormir. Acordo, e desenho círculos e linhas. Vou trabalhar. Limpo as mesas da sala, marco os lugares, os pratos, os talheres alinhados... Chego a casa, desenho linhas dentro de círculos e linhas que saiem dos círculos. Acordo. Desenho círculos. São sempre diferentes. Ás vezes corto o papel e configuro uma imagem. Um padrão. Marco a mesa. Os pratos são diferentes. As pessoas que chegam são diferentes. A comida é diferente. A composição é diferente. Encontro na repetição algo novo. Então desenho linhas e círculos, círculos que nascem das linhas, para dentro e para fora. Linhas para fora, do fim ao meio, do meio ao fim. Ricardo Rodrigues Ilustro por paixão, mas sou formado em Design de Comunicação. Ilustrei livros infantis para autores como Luísa Ducla Soares, João Manuel Ribeiro ou António Torrado, mas a caneta bic preta é a minha melhor amiga. O ponto de partida para os trabalhos que compõem esta exposição é este texto: “Somos assim: sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.” (in Os Irmãos Karamazov, Fiódor Dostoiévski).