Há alguns meses, depois de ter feito uma série de pinturas no quarto do meu filho, escrevi um texto sobre o luto e sobre como, depois do seu funeral, fiz uma viagem a Itália para procurar consolo na arte. Nesse texto, tentei responder, entre outras coisas, à pergunta "pode a arte curar?". Deveria a missão da arte ser homeopática, como muito do "discurso" actual nos tenta convencer? Dezenas de bienais explicam-nos que "a arte pode descolonizar, exigir reparações, protestar, organizar, curar, consertar, ajudar, socorrer". Dizem-nos que a arte pode, e deve, ser, acima de tudo, um "safe-space" comunitário onde activistas com ideias semelhantes se podem manifestar e falar entre si da possibilidade da cura. Esta tendência é sintomática das mudanças sociais mais abrangentes em curso, reforçadas por extremismos (frouxos), predominantemente cultivados online, hipócritas - pois excluem enquanto clamam por inclusão, reivindicam a comunidade como um valor fundamental enquanto tentam eviscerar, fragmentar e dividir as comunidades existentes - e ineficazes porque são embotados, mas também porque são não funcionais: destinam-se à ostentação, para chamar a atenção, para os "likes", para os "shares", para surfar o algoritmo. Mas nem tudo é assim. Algumas bienais e alguns artistas ainda criam trabalhos extraordinários no âmbito deste discurso ou num plano adjacente a ele. Alguns aproveitam a "onda" mantendo-se, ainda, fiéis aos seus próprios interesses, que por vezes se intersectam. Porém, no contexto económica e politicamente corrupto dos "white cubes" das instituições e das galerias, grande parte da arte homeopática parece contentar-se em deixar-se instalar, desenvolver carreira e acumular riqueza no próprio terreno do opressor. E existem disso exemplos incontáveis: uma performance que joga com a activação política da sensibilidade dos participantes em relação às vidas difíceis dos migrantes ao mesmo tempo que ignora deliberadamente ou está alheada do facto de que está a ser apresentada numa sala de um museu que tem o nome de um fabricante de armas cujos lucros provêm exactamente da venda de armas utilizadas na opressão das pessoas sobre as quais a performance se debruça. Não foi por isso que me dediquei à arte: nunca foi para lhe pedir que me curasse ou que me corrigisse.Porém, de uma maneira ou de outra, ali estava eu, defronte da Judite e Holofernes de Gentileschi, da Deposição da Cruz de Pontormo e do David de Miguel Ângelo, pedindo-lhes que me consertassem. Quando estávamos a decidir programar a apresentação de A Brief History of Princess X e Les Extraordinaires Mesaventures de la Jeune Fille de Pierre na Appleton Square, a Ana Cachola perguntou-me: "Porque é que fazes trabalhos sobre arte?" Sempre adorei a arte. Para mim, a arte sempre foi extremamente importante, desde a minha infância. Funcionava, simultaneamente, como refúgio, como escudo e espada, onde me podia esconder, proteger, ou permitindo-me empunhá-la emocionalmente, sexualmente, politicamente, comicamente, num mundo que pressentia ser cáustico, agressivo e opressivo. Via a arte como potencialmente política, filosófica e transcendental, mas também confrontei-me com a ideia de que esse idealismo era uma ingenuidade absurda, e então perguntei-me: "Será que a arte pode ser realmente política? E deveria aspirar a sê-lo?" Foi essa a questão que me levou a fazer Les Extraordinaires Mesaventures de la Jeune Fille de Pierre, um vídeo meta-naif sobre uma escultura que foge do Louvre porque está farta de ser arte: insignificante, decorativa e politicamente inactiva. A escultura quer sair para o mundo "real" e envolver-se em protestos, fazer frente aos opressores, quer lutar, gritar e amaldiçoar a desigualdade. Mas acaba por ser espancada e esmagada, e uma das suas pernas de mármore acaba por se partir. O filme parece sugerir que talvez a arte seja demasiado frágil para isso - para se envolver na política - que talvez ao renunciar exactamente ao que tem de especial para se envolver na política falhe nesse envolvimento político, acabando por ficar sem nada. E foi essa a razão pela qual, no caso de A Brief History of Princess X, me concentrei na obra de arte. Nesta curta-metragem, Brancusi é, a meu ver, um antagonista - um narcisista misógino e egocêntrico que, apesar das suas intenções, acaba por ser um veículo para a criação da sua obra, e essa obra, como a Rosalyn Krauss diria, é independente e livre do seu criador. Como no caso das microagressões, a arte pertence ao receptor e intérprete. Diz-se que Brancusi afirmou acerca da sua escultura hiper-polida de bronze "Isto é mulher", numa aparente contradição da sua forma fálica. Porém, se tomarmos Brancusi à letra, podemos constatar que a "glande" poderia representar a cabeça, os "testículos" os seios e o "corpus" o longo pescoço de uma mulher. Sabemos que assim é porque esta escultura começou por ser o busto de uma mulher. Mas estaria Brancusi a ser desonesto ao afirmar que aquilo era mulher? Podemos interpretar a sua observação, e a sua realização da escultura, como misoginia paternalista, na transformação de um retrato de uma mulher de quem não gostava na forma de uma pila, a modos de graffiti de casa de banho ou caricatura obscena? Terá sido isso que Brancusi fez? Estaria ele a troçar de Marie Bonaparte ao transformar o seu retrato num pénis, simplesmente porque, ao que consta, "a achava uma mulher detestável e narcisista"? Ou será a caricatura grotesca o seu protesto contra a divisão de classes, entre a da exigente e aristocrática mecenas e a dele próprio, um artista "faminto" e em dificuldades? Será que a escultura de Brancusi se inspira no folclore genderqueer romeno? Ou estará a citar Aristófanes no Banquete de Platão quando declara que os seres primordiais eram de ambos os géneros, fazendo assim de "Princess X" uma obra protoqueer sobre a não binaridade, sobre o facto de todos sermos de ambos os géneros? Estará a elaborar sobre as teorias de Freud (também ele misógino) acerca da "inveja do pénis"? Estará a sugerir uma disfunção na sexualidade feminina, em relação aos impulsos "fálicos" femininos? Talvez Brancusi, obcecado por Jung e deslumbrado por Freud, tenha considerado as cirurgias clitorianas de Bonaparte como sintomáticas daquilo que Freud (com quem Bonaparte estudou e cuja fuga dos nazis financiou) rotulou misoginamente como "histeria" resultante de uma "inveja do pénis reprimida"? Ou será que ele goza com a psicanálise e, por conseguinte, com Bonaparte, ao caricaturar conceitos freudianos na sua escultura? Estaria Brancusi a ser desonesto ao dizer ao ministro da cultura que a obra era uma representação honesta da pura essência da mulher? Ou estaria ele a fazer-se de engraçadinho? Não temos forma de o saber. Não fazemos a mínima ideia de se Brancusi estava a ser poético ou simplesmente um 'palhaço'. Em todo o caso, a obra persiste. Segundo Krauss, tem vida própria. Ou, como ela também sugeriu sobre um dos contemporâneos de Brancusi, Pablo Picasso, o homem era um idiota misógino, mas a sua arte, pelo menos nas mãos de uma boa crítica, era genial.E creio que o afirmava literalmente: que Picasso, tal como o prodigioso escultor hiper-realista que literalmente cagava esculturas do conto "The Suffering Channel" de Foster Wallace, criava obras-primas involuntariamente, que não conseguia evitá-lo. Até os artistas parecem por vezes concordar - tanto Bob Dylan como Ottessa Moshfegh já referiram que se sentem mais como veículos de uma voz celestial que não controlam e que se sobrepõe ao seu monólogo interior - e que provoca uma efusão incontrolável de verso, prosa (ou, no caso de Picasso, pinceladas). Mas talvez seja esse o ponto crucial de A Brief History of Princess X: centrar o trabalho. Não se trata da história de Brancusi (que pode ser aborrecida ou previsível na forma como se conforma com os estereótipos misóginos da época); nem da história de Bonaparte (que é profunda e antecipatória na sua atitude precoce de positividade e igualdade de género e relativamente à modificação cirúrgica do corpo). A Brief History of Princess X é sobre a obra de arte em si, não sobre as pessoas. O que nos traz a um terceiro tema: o animismo e a animação. Les Extraordinaires Mesaventures de la Jeune fille de Pierre é uma animação sobre uma escultura feita de pedra que ganha vida (através da magia do VFX) e recebe uma "anima". Anteriormente, tinha realizado uma outra curta, The Artificial Humors, sobre um jovem robô que vive numa aldeia Yawalapiti "animista" (ou, numa linguagem mais actual, "perspectivalista", embora o termo também tenha sido cunhado por um antropólogo branco) no Parque do Xingu, em Mato Grosso. O meu interesse por ontologias não antropocêntricas, pelo animismo e pela animação fez-me criar uma animação com live-action sobre uma comunidade indígena que aceita no seu seio uma entidade não humana, neste caso um robô, que é capaz de o fazer devido à sua integração de ontologias não antropocêntricas. Como Viveiros de Castro descreve, os Yawalapiti vêem o universo como uma multiplicidade de perspectivas: a perspectiva dos Yawalapiti, a perspectiva da onça, a perspectiva do rio, da árvore, da pedra... Tal como com Hans Christian Andersen, em cujas histórias cada pinheiro, colher, relógio, maçã, palito de fósforo, sapato, gafanhoto, corvo, porco de metal têm um mundo seu - e uma visão particular do mundo, incluindo moralidade, regras, desejos, apetites e perversões. Não será por acaso que, depois de ter realizado The Artificial Humors na aldeia Yawalapiti, fiz Jeune Fille, uma adaptação do conto de Hans Christian Andersen "O Pinheirinho" sobre uma bela, jovem e ingénua árvore que vive na floresta e se enche de ciúmes ao ver outros pinheirinhos menos bonitos que ela a serem cortados para servirem de árvores de Natal. Dominada pelo desejo irreprimível de se tornar árvore de Natal, quando o seu sonho finalmente se realiza, a árvore descobre que é muito pior do que ser uma árvore na floresta, e tudo o que quer é voltar atrás. Infelizmente, apercebe-se tarde demais de que nunca deveria ter desejado participar no "mundo real". Desfeita debaixo dos sôfregos sapatos das violentas crianças que há umas páginas atrás desembrulhavam presentes sob os seus ramos é, por fim, transformada em cinzas numa fogueira que não tem outro propósito senão consumi-la. Gabriel Abrantes, Junho 2024