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DORINDO CARVALHO: VIAGEM AO IMAGINÁRIO DE UM PINTOR
José Fernando Tavares
Mais do que a retrospectiva de uma obra consagrada pelo tempo e pelo mérito do seu criador, a presente exposição procura alcançar uma amplitude e uma profundidade um pouco diferente daquelas que o artista tem vindo a realizar ao longo dos últimos anos. Os quarenta e cinco quadros aqui expostos possuem um sentido que vai para lá da mera ordem cronológica. Se a marca do tempo existe e se é anunciada pelo traço, pela forma ou pela cor, essa marca temporal encontra-se imbuída no espírito de cada criação, seja na sua individualidade formal seja na sua fase compósita ou período estético do qual possa fazer parte. A obra pictórica de Dorindo Carvalho, e tal como o pintor no-lo revela nas suas ulteriores exposições, é o resultado do que podemos denominar de «período estético», não obstante esse período não se fixar, de forma definitiva, numa determinada época do seu percurso criador, dadas as alternâncias e as intermitências que a sua inquietação interior tem vindo a testemunhar através a pintura enquanto manifestação ou revelação do espírito.
Trata-se, na verdade, de um longo período estético que anuncia ao observador essas intermitências, ou «fases» (no sentido da periodização crítica), pois todas essas fases formam uma cosmologia que ultrapassa o domínio do formal. A apropriação da forma, assegurada pela sua impositiva permanência, pela sua insinuante repetição ou emergência, fazem da obra uma entidade com uma vida e um percurso próprios. O artefacto estético afirma-se quando o objecto criado ultrapassa o seu nível experimental e se afirma por si mesmo, quando se torna evidência e revelação. E isso acontece até mesmo quando grita o seu próprio inacabamento. É na sua suposta incompletude, na sua quase dissolução, que a obra, de resto, afirma a sua originalidade, contribuindo para essa dimensão cosmológica que se observa no resultado da composição.
Esta nobre exaltação da verdade criadora é visível em qualquer exposição de Dorindo: os quadros aqui expostos são a confirmação dessa verdade que assiste a toda a grande arte. Encontra o observador um sentido do humano que está para lá da ordem estética, dada a sua evidência na hábil conjugação entre o figurativo e o abstracto, anunciando-nos que o universo humano é essencialmente abstracto, na sua feição simultaneamente polimórfica e geométrica, e que é no seio da abstracção que a dimensão do humano se afirma, anunciando a sua verdade intemporal.
É por este motivo que a abstracção pictórica constitui uma metarepresentação da realidade: em toda a composição que se afigura visível dentro dos limites de uma tela se evidencia uma réplica do mundo, sobretudo desse mundo interior que é complementar (porque de igual dimensão) da realidade propriamente dita, tal como os nossos sentidos no-lo dão a conhecer numa perspectiva imanente e sensitiva. A arte pictórica (pois é a esta que nos referimos) ultrapassa essa imanência, tal como a pintura de Dorindo nos tem vindo a demonstrar ao longo dos últimos vinte e cinco anos (período que marca o início das nossas reflexões avulsas em torno do seu trabalho criador), se exceptuarmos um período específico da nossa formação, aquele em que contemplávamos com incauto e despreocupado enlevo o seu trabalho gráfico através das capas dos livros cuja leitura nos marcou para sempre e que constitui uma vertente fundamental da sua carreira. Nessa época (situada entre os finais de 60 e durante toda a década de 1970) impunha-se a linguagem figurativa, embora nesse figurado já se anunciasse uma estilização (se nos é apropriado considerar) que já deixava entrever uma dimensão cosmológica do humano, o vislumbre de uma força inaudita que se ocultava, por assim dizer, por detrás das figuras que representavam alguma da miséria da condição humana, sem dúvida um reflexo das histórias a que estavam simbolicamente associadas. A representação do auto-retrato do pintor é um poderoso reflexo dessa dimensão cosmológica e, porque não dizê-lo, metafísica. A sua suposta «nudez» anuncia-nos o seu despojamento face à brutal imanência da realidade. O barquinho de papel invertido que ostenta e a maçã que projecta na tela, representam o eterno jogo entre a inocência e o pecado, dele resultando o equilíbrio precário, embora indispensável, que sustenta a vida na sua componente simultaneamente sonhadora e esperançosa.
Neste percurso criador, essa dimensão cosmológica tornou-se o centro da sua arte: a presença do homem impõe-se, não apenas pelo vigor da forma mas também pela poderosa circunstância dessa outra expressão formal complementar, pela sua envolvência geométrica ou poligonal, pela impositiva emergência da abstracção e dos seus múltiplos sentidos, dos quais derivam a sua perspectiva a um tempo libertadora e libertária, qualidades que permitem ao espectador deparar-se com o seu próprio espanto, após uma deslumbrante viagem pelo tempo e pelo imaginário de um pintor incontornável que ficará para a história da arte contemporânea com o nome de Dorindo Carvalho.
Fonte: https://cm-aljezur.pt/pt/agenda/3434/exposicao-de-pintura-viagem-ao-imaginario-de-um-pintor.aspx
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