DA LUZ À IMACULADA O aro de Borba é um lugar de memória e de tradição. Todo o território em seu redor é fértil em acontecimentos marcantes da nossa História, são inúmeros os monumentos de destacado interesse cultural, alguns deles com elevado significado simbólico, e muitas são as lendas e crenças que povoam o riquíssimo imaginário popular da região. Por isso, a nossa proposta é um roteiro aliciante pelo aro de um triângulo radiante, cujos vértices serão lugares velados, quase secretos, espalhados pelos concelhos de Borba, Alandroal e Vila Viçosa. Borba não será, apenas, o local de partida e de chegada deste périplo entre a Vida, a Morte e o Além, mas também o centro desse mundo de símbolos e de mistérios. Saídos de Borba, o nosso primeiro destino é a guerra. Não pela batalha sangrenta, nem pela morte que em si representa. Mas antes pela memória dela para que saibamos procurar a paz. Eis-nos em Santa Maria da Vitória, singela capelinha erigida num monte próximo da povoação de Barro Branco. E antes mesmo de prestarmos atenção ao monumento, é a paisagem quem nos capta, em primeiro lugar, a nossa atenção. É deslumbrante o panorama que se desfruta do alto deste monte, com a Serra de Ossa a Sul, uma muralha protectora esculpida pela Natureza, e aos pés, o vale profundo de Montes Claros, regado e alimentado pela Ribeira do Lucefecit. Para lá de tudo isto, são os horizontes perdidos, os infinitos da visão humana. Voltemos, por agora, à Capela de Nossa Senhora da Vitória e ao espectacular padrão, em mármore, que se ergue no seu adro. E mesmo antes de entrarmos, já nos interrogamos sobre a razão daquele conjunto monumental estar ali. Fique, então, sabendo que a existência desta capela se deve ao cumprimento de um voto a Nossa Senhora que fez o Marquês de Marialva, D. António Luís de Meneses, na véspera da terrível Batalha de Montes Claros, ocorrida a 17 de Junho de 1665. Daqui terá o general assistido ao desenrolar da batalha, uma das mais sangrentas de que há memória. Com alpendre e cúpula em meia laranja, destaca-se, no seu interior, o retábulo em mármores brancos e pretos da região, datado da segunda metade do século XVIII. Depois, é bom que reservemos toda a atenção para a lápide que se encontra no adro, com uma longa e belíssima inscrição. Por certo chocado com tamanha mortandade, o Marquês de Marialva mandou esculpir na pedra não só a memória do que ocorreu na Batalha de Montes Claros mas, sobretudo, inscreveu os seus votos para que tragédia assim não se repita na História futura entre os dois países peninsulares. Embora seja um monumento evocativo da vitória militar dos portugueses, trata-se muito mais de um verdadeiro poema à Paz e à Tolerância entre os homens que importa conhecer e interiorizar. É hora de seguir viagem. E vamos da guerra à luz, que é como quem diz que é tempo de descer as encostas do vale de Montes Claros e irmos ao encontro da Ribeira do Lucefecit, porque é dele e das suas águas purificadoras e sagradas que estamos a precisar. Enquanto descemos até à povoação de Rio de Moinhos, cujo nome deriva das muitas azenhas que possuía movidas pela bondade do rio, pensemos neste estranho e mítico nome: Lucefecit. Deriva ele da expressão latina lux fecit, fez-se luz. É, também, o nome do Anjo da Luz – Lúcifer, bastas vezes diabolizado pelas conveniências manipuladoras de um cristianismo fundamentalista. Há-de este pequeno curso de água levar-nos à morada de um grande deus lusitano. Mais tarde, que agora estamos a chegar a Rio de Moinhos para admirarmos a Igreja de Santiago, ou São Tiago, se preferirem. Data esta igreja dos finais do século XIII, pelo menos, já que em 1290 foi nela sepultado D. Gonçalo – provável cavaleiro lavrador proprietário de terras nas imediações –, conforme o atesta uma lápide que podemos admirar no interior do templo. Contudo, antes de entrarmos, vale a pena um olhar atento à alpendrada onde, tal como o nosso percurso, também o caminho sagrado é assinalado por um triângulo no tecto. Trata-se de um delta, um triângulo equilátero, perfeito nas suas formas e ângulos. Um Olho de Deus. Antes de transpormos o pórtico de entrada, é bom que falemos um pouco do patrono: Santiago, São Tiago ou Sant’Iago, o Apóstolo que teria cristianizado a Península Ibérica e cujo maior santuário se situa em Compostela, na Galiza. Ora, durante a Reconquista Cristã, na luta titânica e prolongada que os cristãos peninsulares empreenderam contra os mouros para recuperarem o território, Santiago teve um papel fundamental. Conhecido, na época, como o «Mata Mouros», foi feito padroeiro de todos os exércitos da Ibéria, o que, ainda hoje, acontece. É ele padroeiro do exército espanhol e português, que, por força do destino, aqui se defrontaram, em 1665, numa das batalhas mais terríveis da História dos dois países. E a nossa República, nas suas várias comendas, a mais alta e significativa é a da Ordem de Santiago. Agora sim, é tempo de entrarmos no templo pelo ocidente, como mandam os cânones, para termos o altar a oriente que é de lá que vem a luz, e o crente vai ao templo para receber a luz divina. E, ao entrar, há-de o visitante comum sentir esse calor e ficar deslumbrado perante a beleza da decoração. Toda a nave da igreja se encontra profusamente revestida de frescos, representando cenas da vida do santo. Certos desse deslumbramento, somos obrigados a chamar a atenção para a lápide e a efígie de D. Gonçalo que se preserva na parede lateral esquerda. E dizer-lhe, ainda, que aqui se guarda, igualmente, um raríssimo e antigo cruzeiro, obra arcaica dos finais do século XIII. O nosso trilho é o mesmo que as águas do Lucefecit. Vão elas, tal como nós, a caminho da morada de um deus antigo. E esse lugar sacralizado nos tempos pagãos fica já no concelho de Alandroal. Entretanto, nesta demanda iluminadora, ainda havemos de dar uma olhadela ao Convento de Nossa Senhora da Luz, à saída de Rio de Moinhos. Basta que se saiba ter sido este cenóbio fundado em 1407, primeiro como uma pequena ermida, e depois ampliado para a actual estrutura entre 1574 e 1596, pelos frades da Ordem de São Paulo, cuja sede maior se situa aqui bem perto, na enigmática Serra de Ossa. Um pouco mais adiante, ergue-se o padrão da Batalha de Montes Claros, mandado colocar por D. Pedro, ainda Príncipe Regente e que haveria de ser o segundo do nome na realeza, este sim, a assinalar o local da peleja. Desce o ribeiro em curvas sinuosas, ao sabor da Natureza que é bela e agreste, capaz de comover e de torturar o espírito e a vida dos homens. Acreditavam os celtas que os rios são as veias da terra. E a água que neles corre, o seu sangue. Acreditavam, ainda, que para se passar para o além, tinham que atravessar um rio. Mas, acima de tudo, acreditavam que os deuses chegavam à Humanidade através do rio. E, neste caso específico, o rio chama-se Lucefecit e o deus dá pelo nome de Endovélico. Na estrada que vai do Alandroal para o Redondo, num monte sobranceiro da margem esquerda do Lucefecit, ergue-se um sítio chamado São Miguel da Mota. Difícil é o acesso, como é sempre difícil chegarmos a casa de um deus. E para os lusitanos, esta era a verdadeira morada do deus Endovélico, o Senhor da Alvorada, do florescer, do despontar da Primavera, o Senhor da Luz que vence a Treva. Hoje praticamente despojado, foi outrora um templo de grande importância e aparato. Profanado, primeiro, pela romanização e, depois, pelo cristianismo, as suas pedras com inscrições em louvor de Endovélico foram espalhadas por várias outras construções da região (como, por exemplo, no altar da Igreja de Nossa Senhora da Boa-Nova, em Terena) e, algumas delas, infelizmente, desapareceram para sempre. Aqui vinham os lusitanos pedir saúde para si e para os entes queridos. Mas, acima de tudo, vinha à casa do Endovélico buscar iluminação espiritual e a purificação necessária à passagem para o Além. E não se ia a um lugar onde estava uma imagem ou representação desse deus. Ia-se, efectivamente, à residência da divindade que ficava nesse lugar, onde era possível contactar com o Numen Loci, o espírito do lugar. Numa inscrição proveniente deste santuário pode ler-se o seguinte: DEO ENDOVELLICO PRAESENTISSIMI AC PRAESTANTISSIMI NUMINIS, o que quer dizer: Deus Endovélico, génio aqui presente e muito prestativo. A bênção do Endovélico vai nas águas do Lucefecit, que hão-de chegar ao Guadiana, e depois ao mar, espalhando assim a sua bondade e sabedoria pelo mundo. Antes, porém, essa mesma água dará de beber à terra e aos homens da região, através da belíssima Barragem junto a Terena. Deixemos, nos submundos da História, nesse preâmbulo de jogos entre a Luz e as Trevas, o rio Lucefecit e o santuário do Endovélico, e regressemos a um Portugal já feito e refeito, para irmos ao encontro de Vila Viçosa e de outro lugar sagrado, este dedicado a Nossa Senhora da Conceição, padroeira e rainha de Portugal. Vila Viçosa é terra de muita História. Berço da Dinastia de Bragança, por aqui passaram múltiplos episódios da vida nacional. Merecerá visita atenta, por si só, mas o que nos interessa, por agora, é mesmo o Santuário de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Por isso, apenas lancemos um olhar ao majestoso Paço Ducal e sigamos compenetrados na nossa demanda, muralhas adentro do Castelo medieval. É aí que o nosso destino se cruzará com o destino de Portugal. Antes de entrarmos no templo e de sabermos algo mais sobre a sua construção, importa dizer que ele também é conhecido como o Solar da Padroeira, portanto, a casa de Nossa Senhora, o que não deixa de ser curioso, para quem veio de visitar a morada do Endovélico... Não se pode precisar a data da sua fundação, mas a igreja já é assinalada na época medieval. Tanto mais que, segundo a tradição, terá sido o Condestável do Reino, D. Nuno Álvares Pereira, que terá oferecido a magnífica imagem de Nossa Senhora, em pedra de ançã, que podemos, ainda hoje, admirar no altar-mor. O edifício actual é fruto das obras levadas a cabo em 1569, no reinado de D. Sebastião, com o seu interior fantástico de três naves e onde o mármore da região predomina como material de construção. Bom, e agora que estamos neste Solar da Padroeira, nesta Igreja de Nossa Senhora da Conceição, simultaneamente Matriz de Vila Viçosa, importa aqui pensarmos um pouco na Mãe de Deus e na profunda devoção dos portugueses ao culto mariano. Para percebermos isso, talvez tenhamos que escavar nas memórias da Humanidade, muito para além do nascimento de Portugal, muito para além do nascimento de Cristo, e viajarmos ao tempo em que tratávamos Deus no feminino. E, com a mesma fé, dizíamos a Deusa, a Grande-Mãe, a Magna Mater, senhora criadora da Vida e da Morte, Gea geradora do Universo. Tal como Deus, também a Deusa era omnipotente e omnipresente. Por isso, não havia uma representação figurativa para ela. Cultuavam-na os povos peninsulares nas mais variadas manifestações da Natureza. As águas correntes e nascentes, as montanhas e promontórios, as tempestades, etc., tudo era visto de uma forma panteísta, ou seja, viam a Criadora na Criação. Contudo, aquilo que melhor representava a Grande-Mãe, sobretudo na parte mais sincrética deste sagrado antigo, era a Lua. Teve esse culto, na expressão de Deusa-Lunar-Tríplice, o seu maior santuário na Serra de Sintra, ou Monte da Lua. E como viam os homens essa sua Deusa representada na Lua? Pois bem, ela era menina, na sua juventude alegre durante o Quarto Crescente; apresentava-se mulher adulta, fértil e no seu período ovulatório, plena de luz durante a Lua Cheia; transformando-se, de seguida, na mulher velha, sábia, no decorrer do Quarto Minguante. E depois morria. Para aqueles homens primordiais, a Deusa literalmente morria! Mas morria para voltar a nascer. E essa viagem cíclica de Vida e de Morte é, ainda hoje, a base de muitos rituais iniciáticos pelo mundo fora. Quando D. Afonso Henriques pensou em fundar este nosso Portugal, logo fez de Nossa Senhora a padroeira do novo reino. E não escolheu uma epifania qualquer da Virgem, mas sim a de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Concepção ou Nossa Senhora do Ó. Ou seja, a Senhora grávida, prenhe de luz, neste caso materializada em Jesus, o Cristo. Posto este preambulo, avancemos quinhentos anos na História de Portugal para chegarmos a 25 de Março de 1646, ao Portugal Restaurado e ao reinado de D. João IV, o primeiro da Dinastia de Bragança. É que, nesse dia e por provisão régia referendada nas cortes gerais, Nossa Senhora da Conceição era não só proclamada Padroeira mas, igualmente, Rainha de Portugal. É por isso que, a partir de então, não mais os monarcas portugueses voltaram a colocar a coroa real na cabeça. Ela pertencia, a partir desse dia, a Nossa Senhora. Também se torna curioso observarmos a pintura portuguesa dessa época e vermos como passa a ser representada a Padroeira: com a coroa na cabeça e os pés assentes em cima de uma Lua... Antes de deixarmos este lugar sagrado é necessário sabermos, ainda, que D. João VI fez dele cabeça da Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, a 6 de Fevereiro de 1818. O dia da Padroeira celebra-se a 8 de Dezembro e é feriado nacional. Completo que está este nosso périplo pelo triângulo da Vida, da Morte e do Além, é hora de regressarmos ao centro, que é como quem diz ao umbigo primordial que concentra e irradia toda esta memória espiritual da região: Borba. E regressar a Borba é sempre como regressar ao ventre da Terra-Mãe, porque esta terra tem a força telúrica das orações de xisto purificadas pela água corrente da Fonte do Barbo. Porque Borba é um lugar com espírito. João Rodil Valores: Viagem Alojamento Jantar dia 4 entradas e guia 165,00€ Suplemento Individual 15.00€ Contactos geral@towards-the-rainobow.pt pedro.coradinho@gmail.com 93 592 1337