FEIRA DO LIVRO DO PORTO
23 de agosto pelas 19:00 "A psicogeografia da Cidade Cinza" - monólogo performático de Sara F. Costa
"O condomínio era uma espécie de criança impossível, atravessada entre os dentes. Nenhum rosto humano ao abrigo da dialética. Podíamos olhar para os sucessivos edifícios de 50 andares sabendo que nos devolveriam o olhar. A diferença entre os dois observadores simultaneamente observados era aquela que existe entre o criador e aquele que é criado. Entre tantos, o criado é apenas episódico e tal é a sua experiência da realidade. Entretanto, todas as ocorrências da vida se vão agrupando em representações: nada que as justifique, nada que seja delas direta consequência. Quando os pais de Maddy se mudaram para o condomínio, os vizinhos já sabiam disso. Comentavam com frequência o estado de saúde mental daquele cão que era visto a exasperar-se com o seu próprio reflexo nas águas do canal, diziam: “Aquele cão não tem problema nenhum, mas quer morrer.”
- Esse cão é depressivo! - Dizia o Sr. Yu, vizinho do andar de cima. - Põe-se a correr ao longo do canal como se quisesse bater em retirada, digo mesmo, tenta afogar-se! Atira-se e quer deixar-se por ali. Grande e pesado como é, consegue ostentosamente ir ao fundo e não oferece resistência! Já o fui resgatar quatro vezes, ele sai sempre com um cheiro latrinário a carne putrefata. Tenho que pôr a roupa para lavar logo que chego a casa e meter-me debaixo do chuveiro para não ficar com esse eflúvio entranhado.
Maddy achava o relato inusitado. Ela nunca tinha visto o cão fora dos limites do condomínio Shenjia. Era um cão pequeno e, por isso, não compreendia porque é que o Sr. Yu insistia em dizer que tinha visto um cão grande e pesado que se deixava afogar assim, intencionalmente. "Cidade Cinza de Sara F. Costa,
Editora Labirinto, 2024